[texto com introdução longa]
Quem repara o suficiente e quem frequenta a internet regularmente sabe de todos os índices e vídeos que indicam o aumento de um certo grupo que segue uma certa doutrina religiosa responsável historicamente por diversos estragos irreparáveis e abusos, além de inúmeras mortes de mulheres, homossexuais, transexuais, etc. Eles, assim como outros grupos historicamente problemáticos e cruéis também se modernizaram: “trad wife”, “clean girl”, esse tipo de trend cheia de nuances também problemáticas e direcionadas especificamente para um certo tipo de pessoa são os apitos que muitas pessoas começaram a adotar. Quando se olha para esse tipo de coisa reparando nos rostos que a apresentam mais, que consomem mais e que glamourizam mais, repara-se também em semelhanças com tudo aquilo que devia ter sido extinto há décadas e que hoje retorna com outras faces, mas com a mesmíssima raiz.
“Clean girl” é algo que me irrita muito. No começo achei que era uma comunidade de skincare e pensei “ótimo, deve ter ótimas dicas” e no fim tudo acaba sendo um clube da luluzinha com regras para separar “quem é legal e quem não é”, como se portar, como ser bonita, como ser inofensiva, até, coisa que deixa qualquer cria de Rita Lee maluca da cabeça. Me desculpem, mas um cabelo preso e totalmente puxado sem um fio pra cima não me passa a impressão de limpeza; o momento em que mais prendo o meu é antes de lavar porque sei que ele fica horrível quando já está sujo. “Nenhuma tatuagem, você não coloca adesivo numa ferrari” — primeiro: se você se limita tanto, te falta coragem para ter personalidade e isso não é digno de aplauso, é digno de pena. Segundo: você não é a porcaria de um carro. A naturalização da objetificação da mulher, não apenas no tratamento de objeto mas a coisificação em si, é algo que deveria ser rejeitado com veemência em qualquer manifestação. Silencie as pessoas, tenha raiva! O momento de ter um discurso dócil, além de já ter passado, parece não ter adiantado absolutamente nada. É hora de incentivar a rebeldia além de explicar as raízes estruturais e sociais, principalmente para meninas que querem se sentir pertencentes a algo. Todas nós já fomos essa garota, o problema é que agora, com a geração mais nova, tem-se uma onda de conservadorismo/religiosa muito perigosa. O mais frustrante é que passamos por uma fase muito boa de empoderamento feminino e de discussões sobre sexualidade (no geral), e hoje as pessoas sentem vergonha daquela época (um beijo, temercore 2016’s club). Tem algumas coisas que ficaram engraçadas com o tempo, realmente, mas não dá pra dizer que não teve um efeito positivo. Eu me via e me entendia em mulheres mais velhas que faziam vídeos falando coisas que elas queriam ter ouvido. Para quem estiver lendo, tendo mais ou menos do que meus vinte e quatro anos, eu digo o que eu gostaria que não fosse esquecido, e o que teria sido uma perda enorme se nunca tivesse passado por mim[:].
[fim da introdução, começo da revolução]
Atualmente vemos pessoas ditando coisas o tempo todo. O que você deve fazer, como, onde, o que deve comprar (principalmente), o que é aceitável e o que não é (e deus te livre de não ser, hein?), e de certa forma sempre foi assim; o ser humano tem “dar pitaco” na configuração de fábrica, mas o alcance que a internet trouxe piorou isso de forma incalculável — não apenas porque você vê até crianças falando de como ganhar dinheiro, mas porque você vê gente engolindo cada pataquada que é revoltante. O mais incômodo são as coisas voltadas às mulheres (atingindo meninas) e o que é feito para atingir o público lgbtq+ jovem: tirar uma bandeira do seu quarto não tira a essência de quem você é. Aceitação demora, não vem com uma trend — e você também não vai desaparecer por causa de uma.
Esse texto não é pra ditar nada, mas para te incentivar: não seja conveniente e nem conivente!
Pitty já dizia: mesmo que seja estranho, seja você. Mesmo que seja bizarro, bizarro, bizarro. Talvez enfatizar o bizarro não seja a melhor abordagem? Talvez, mas também é a essência da coisa. Houve uma época (curtíssima) em que ser esquisito era uma vibe. Alguém deve ter lucrado pouco com isso, porque sinto que não durou — a prova é essa palhaçada de ser troféu e “clean” [apenas tome um banho, meu deus]. Vamos ver os dois C’s:
Conveniente
Não ser conveniente é não participar e não estimular esse tipo de ideia porque elas são nocivas. Focando na questão de “trad-wife-clean-girl”: a estética é muito importante em diversos âmbitos da vida porque somos seres muito visuais, tanto que temos toda uma dedicação ao estudo de cores, a psicologia por trás delas, círculo cromático, cenografia, etc., tudo isso é usado para te seduzir e fazer aquilo parecer bonito, inofensivo, puro, mas houve uma graça caindo sobre nossas cabeças: pessoas rejeitando a estética clean girl e enaltecendo não apenas a tatuagem, mas também o frizz — que se opõe ao cabelo estilo boi-lambeu das dondocas de cores neutras e que faz parte naturalmente do cabelo de diversas mulheres, principalmente aquelas com cabelos ondulados, crespos e cacheados. Não é exagero dizer que esse tipo de coisa é voltada e majoritariamente utilizada por um certo tipo de pessoa — e que obsessão por suposta limpeza e “pureza” é essa?
Mulher, você é latina! [https://www.instagram.com/reel/DC9oZJUOLUa/?igsh=bzJoc3BvODE3djZ3]
Nossas condições climáticas também favorecem o frizz, e o nosso frizz é um charme porque é um efeito natural, é nosso corpo reagindo e sendo o que ele deve ser: vivo.
[não consigo imaginar a Gal de bege e cabelo preso com gel]
Outro ponto importante a levantar é que muitas pessoas um dia tiveram sua identidade apagada com os cabelos alisados ou raspados pela pressão estética e social gerada pelo preconceito. Tivemos uma onda de transição capilar no país que foi bonita de ver, e isso reverberou positivamente nos mais vulneráveis: as crianças.
Para que então recentemente tenha-se de volta o conceito do que é “bonito” e “limpo” voltado a certos padrões. Por quê? Não somente em questão de estética, mas até em comportamento — potencializando a romantização da feminilidade na forma patriarcal, na forma que se vende a feminilidade — e afinal, o que é feminino?
Vale lembrar que muitos direitos das mulheres foram conquistados há pouco tempo (até 2006 o Brasil não tinha nenhuma lei que tratasse especificamente da violência doméstica, quando então surgiu a Lei Maria da Penha, criticada e questionada até hoje), e certas práticas e comportamentos apresentados em vídeos que parecem inofensivos são um estímulo ao retrocesso (como ser delicada, como falar, como comer, postura xyz, voz baixa, enfim, um tutorial atrás do outro de como se domesticar pra agradar o que é nocivo pra você).
Hoje ouvi a seguinte frase: “algumas vezes as pessoas usam tanto da ironia que começam a acreditar naquilo”, e nesse caso não é diferente. “É só uma trend, é só uma estética” — não é. É uma ideia que reverbera, que se propaga. Então como não ser conveniente com isso, uma vez que você não acredite nesses conceitos e ao invés disso acredite também que eles podem ser nocivos? Não se deixe levar. Todo cenário é bonito, todos dois segundos de corte parecem mágicos, mas nós já nos torturamos demais para caber em exigências impossíveis. Se até a Taylor Swift, riquíssima e cheia de recursos sente essa pressão (e também parece se ver presa à ela), como nós seríamos diferentes?
Você não precisa de milhares de produtos (atenção ao que te incentiva a consumir demais!). Seu frizz é natural. Usar cores é saudável — se expressar como quiser é saudável. E se você gosta de cores neutras — não é esse o problema. O problema é o combo: estão tentando convencer as pessoas -e principalmente as meninas/mulheres- que ter personalidade não é a moda do momento. Abra qualquer rede social sua e veja quantas pessoas estão com a mesma cara. Acontece que toda moda é uma gangorra: vai e volta. Estamos de volta aos anos 90, de volta à cultura da magreza extrema, a indústria já sugou o que podia do discurso positividade corporal e adivinhe? Daqui há um tempo estará sugando de novo. A beleza natural já está sendo enaltecida de novo (aos poucos) e alguns “influenciadores” já querem tirar procedimentos; o próprio fantástico fez uma matéria sobre. Mostraram mulheres bem conhecidas por nós que estão preferindo aparecer sem maquiagem — esse distanciamento acontece e o ritmo dele é paralelo ao acesso. Quão rápida você vai ser pra se encaixar na próxima onda? Mas francamente, eu duvido que o conservadorismo diminua; por isso você não pode diminuir.
Conivente
Nosso bom e velho dicionário da língua brasileira1 diz o seguinte:
“que ou quem, sabendo de algo negativo a ser praticado por outrem, não faz nada para impedi-lo, embora pudesse fazê-lo; complacente, condescendente, transigente. / que ou quem é cúmplice; que ou quem se conluiou.”
Você acha que não pode fazer nada, mas pode. A primeira coisa é não impulsionar. A distância é a melhor opção; rejeitar o algoritmo é uma possibilidade. Mas e fora das telas?
O mundo online é uma peça bem cafajeste: os cenários são falsos, as edições são muitas, os cortes são precisos, a luz é regradinha, enfim, é tudo pelo aesthetic e é óbvio que algumas coisas são lindas de se ver (eu perderia horas vendo vídeos de gente arrumando e decorando a casa), e através de uma youtuber estrangeira soube que recentemente algumas pessoas que fazem vídeos naquela rede admitiram as mentiras que já contaram (ou seja, que venderam) para a audiência.
Podemos dizer que boa parte das “inspirações” por aí são uma bobagem. Ou estão mentindo na sua cara ou possuem uma outra posição socioeconômica. Não estou dizendo que você deve transcender agora já imediatamente [!], mas quero te incentivar a não ser cúmplice. Quantas coisas você acompanha que realmente agregam ou te fazem sentir bem, e não te colocam para baixo ou em estado de comparação? Não compare suas 24 horas com trinta segundos magníficos.
Os dois C’s unidos
Podemos dizer que nesse caso, ser conveniente é [se forçar a] participar e ser conivente é impulsionar, engajar, etc. Não se conforme.
Bela e recatada LIVRE E SELVAGEM
Ainda que todas as modas de rede de vídeos sejam a indústria em movimento, o pinterest será meu refúgio2 — apesar da última novidade grotesca no pinterest (a chuva de anúncios e certos conteúdos não humanos), ainda é um lugar que é possível encontrar inspiração e identificação. Todo algoritmo é passível de treino; domine a besta e tenha um cantinho de paz. A melhor forma de fazer isso é com a ferramenta de busca; infelizmente colocar “aesthetic” ajuda muito. Peguei bode da palavra em inglês, mas “film 35mm aesthetic” me deu pins lindos.
Uma coisa que venho cultivando desde a adolescência (e que Alessia Cara também cultivou em mim muito bem) é essa ideia “livre e selvagem”. Sempre fui um tanto apaixonada por ela e acredito que a essência seja você, sem se conformar com as pressões, sem se render a elas. É impossível esquivar totalmente da sensação que elas provocam, mas é possível se resgatar. Seja na vibe emo, gótica, metálica, rock’n roll, meio hippie, camponesa, o que for — criar o seu jeito de expressão, se rodear das coisas que te refletem perante estímulos de padronização e normatividade é a coisa mais selvagem que se pode fazer. Parece pouco, parece bobo, mas é revolucionário se escolher dentre essa nova realidade que os outros escolhem por você, que um sistema de uns e zeros escolhe por você — que te vendem fórmulas de se sentir cada vez pior consigo — e principalmente continuar fazendo isso. A constância consigo mesmo é uma dádiva porque o mercado, a indústria, o que está em alta nunca terá constância, mas a sensação que esse conjunto gera, sim. Isso, pelo o que observamos, nunca mudou. São os mesmos objetivos e os mesmos alvos, só muda a dinâmica e o modo que se aplica.
Isso tudo é para te incentivar a não ceder. Cerque-se de você; não tenha vergonha das coisas que te constituem. A autenticidade está em falta; não esteja em falta consigo.
Se expresse. Lembre-se que encontrar seu modo de expressão não deve ser um processo maçante, mas uma coisa gostosa e até divertida. Independente da idade que tenha, você pode se reinventar, se descobrir, experimentar. Ninguém além de você precisa entender, mas você precisa sentir e tem que ser bom, leve.
Faça colagem, mosaico, use maquiagem, não use maquiagem, vá a brechós, experimente algo novo — um livro, filme, série, comida —, não leia a sinopse, leia o final, ouça o que quiser, escreva algo, rabisque tudo, deixe no aleatório, se surpreenda, bloqueia ou silencia aquela pessoa que te deixa insegura, diga que não e diga que sim quando você quiser dizer não ou sim, tente. E em caso de dúvida: o problema não são as coisas [estéticas] em si (a maquiagem mesmo possibilita diversas expressões artísticas), mas a motivação e o modo sob o qual elas são utilizadas em larga escala.
A única coisa que peço é que sempre tenham cuidado. O mundo não é gentil conosco — mas este espaço é e será gentil com você.
Com carinho [e rebeldia],
bê ponto e vírgula.
reivindicando nosso lugar
trocadilho com “ainda que eu ande pelo vale da morte […]”
eu amei muito seu texto e sua forma de escrever!! concordo com cada palavra dita. e é por isso que me irrita a galera dizendo "nossa, não aguento mais ver texto criticando clean girl", pois eu acho é que tá pouco!!!! falar sobre o quanto isso é meio problemático se for olhar cada camada direitinho, é uma das poucas coisas que a gente pode fazer pra acabar com essa cultura besta que voltaram a enaltecer. ter personalidade própria virou luxo.
PITTY MENCIONADA VAMOO💪💪