todo amor é condicional
[inclusive o nosso]
isso me atingiu há mais tempo e mais situações do que consigo contar. desde então, “unconditionally” da Katy Perry perdeu o sentido.
Desde pequena, ouço essa palavra religiosamente. “Incondicional”. E ouvia ainda “amor incondicional, só de mãe”. E sinceramente? Não. Quantos pais detestam seus filhos? Não somente isso: até quando lutar por um amor incondicional não vai te matar?
Uma vez vi a história de uma senhora. O filho dela ela era uma pessoa péssima e ingrata. Ela aguentou muito, até cortar o contato com ele. As pessoas se assustavam e diziam “mas é seu filho!” como se título ou grau de parentesco fosse passe livre para fazer o inferno brotar no interno de alguém e continuar sendo amado. Ela disse “não importa. Eu pari, criei, mas ele é uma pessoa independente a mim. Ele fez suas escolhas.”
Sucinto. Pois vamos pensar: se essa pessoa não tivesse um vínculo, se o filho dessa senhora não fosse filho dela e ela soubesse das suas ações, ela o reprovaria prontamente (e ninguém questionaria). Temos uma ideia romântica socialmente propagada de que “família é tudo e estará lá por você”. Na maioria dos casos, é totalmente o contrário. É ela que te adoece. São as pessoas que você mais ama, ou que deveria amar mais do que as outras, que te destroem antes que você se construa. Isso é só uma introdução e um exemplo “mais extremo”, mas não é sobre família que eu quero falar hoje. Quero falar da ideia romântica geral sobre amor incondicional.
Todo amor — e todo sentimento em si — é condicional. Para respeitar, a sua condição é ser respeitado. Para confiar, a condição é que se crie o elo de confiança. Para amar, existem algumas condições: ser ouvido, ser respeitado, receber carinho, ser reconhecido, ser apreciado, ser desejado, para algumas pessoas, enfim. Nós atrelamos diferentes coisas ao amor. Eu associo principalmente, por exemplo, o diálogo, o respeito e o desejo. Se um dos três (ou os três) faltam, eu não me sinto amada. Se alguém deixa de me ouvir ou de me compreender, então eu me sinto desrespeitada — e menos amada. O desejo, para mim, também é indissociável do sentimento. E falo isso me reconhecendo como pessoa demissexual, uma vez que o desejo só surge quando eu sinto alguma coisa — ainda que nem seja exatamente romântica, mas que para mim tenha uma associação — como, por exemplo, carinho, admiração e respeito + atração física. Isso não quer dizer que eu vou me atrair por todo mundo que tenho carinho e respeito (considero atração algo complexo, mas sinto que tem um “quê” que faz ela surgir com alguns fatores), enfim!!
O amor incondicional é uma ideia romântica fantasiosa. Às vezes me parece que ele foi criado para acreditarmos em eternidade diante da iminência da morte. Tudo acaba — mas eu vou te amar incondicionalmente até em outro plano. Mas muitas vezes confundimos as coisas. Acreditamos que um sentimento é incondicional (mesmo quando já está desgastado) porque algo nos prende, seja alguma condição objetiva mais inconsciente ou o olhar romântico que pede fuga. Dependência não é incondicionalidade. Insistir em relações (amorosas, familiares, etc.) desgastadas não é amor incondicional. É dependência. É precisar que algo se mantenha, seja uma estrutura (ainda que por um fio) ou uma ideia. De repente você já nem sente amor em si, mas quer continuar sentindo — porque é família e você tem que amar, ou porque você investiu nessa relação, seja tempo, esforço emocional, dinheiro, sacrifício, etc., ou porque os anos de amizade e as memórias que vocês criaram não podem só ter morrido assim. Você persiste e segura um fio que, do outro lado, não tem uma mão humana, mas uma lembrança, uma ideia, um resquício. O que sobra quando todas as coisas morrem? O que resta em nós quando aquilo já não é mais o mesmo?
Transformamos o amor em qualquer outra coisa que nos faça ficar, que nos dê uma razão, que não enterre o que já se foi. E às vezes, quem mudou foi você. E quando nós morremos e os sentimentos vão junto? Quem cuida do funeral que nem nós mesmos temos consciência? Transformamos o amor em algo que mantenha a forma ainda que ela já não seja a mesma. É algo sem nome — um receptáculo de memórias e de construção parado no tempo. Transformamos o amor em qualquer coisa, inclusive uma continuidade. Mas uma vez que se transforma, ainda mais para tentar fazer permanecer [o quê?] não é mais amor.
Paixão é fósforo riscado e inflamado. Amor é chama contínua, calor fixo, hora três graus a menos, hora três a mais, mas ainda assim, ali. Essa transformação que formamos é uma brasa fraca.
Ninguém sente nada incondicionalmente por outra pessoa. Nem seus pais, nem seus amigos, nem seus romances. Todo sentimento precisa ser sustentado — igual uma planta. É a analogia mais cafona? Talvez, mas é a mais verdadeira. Planta nenhuma sobrevive sem rega, sem água da chuva (e toda planta morre no excesso). Pessoa nenhuma sustenta sentimento sozinha. O que fica é memória, apego, dependência, chame do que quiser, crie um nome pro que for — mas resquício não sustenta completude.
Todo mundo tem condições pra se sentir amado. Quais são tuas condições pra continuar amando?
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a própria bell hooks defende fortemente a ideia de amor ser uma construção. ora, se amor é construção, que construção ocorreria se não fosse intencional e condicional? o amor é o terreno que a gente escolhe cultivar
Amo seus textos, bê!
O que você falou sobre família é muito real. Infelizmente, descobri isso cedo demais, quando criança. Após a separação de meus pais, morei com minha mãe. Resumindo uns três anos da minha vida, ela é narcisista pura. O significado mais cru e insensível da palavra. E durante esses anos, percebi que a família, do mesmo jeito que te acolhe, te humilha e lhe deixa pior do que estava antes. Enfim... em 2023 conheci minha madrasta pessoalmente (nós nos conhecemos por vídeo chamada!). Acredito eu ter sido amor a primeira vista. Hoje, casada com meu pai, formamos uma família linda. Temos um amor gigantesco, ela me chama de "filha" e eu a chamo de "mãe". É como se eu realmente tivesse nascido dela, sabe?
E é exatamente sobre isso que você retratou no texto: temos nossas divergências, às vezes discutimos, sentimos raiva uma da outra. Porém, nosso amor é tão grande e nós sustentamos esse sentimento juntas, com muito diálogo e respeito. Se algo não está legal, sentamos para resolver. O amor não precisa ser cansativo ou, como você mesma disse, incondicional. Incondicionalidade só nós trás problemas emocionais e traumas.