Pensar demais é uma bagunça. Eu estava lendo Clarice, então de repente pensei que quando a mãe voltasse podíamos comer mousse de abacate, talvez já estivesse bom. Então lembrei que o pudim estava no forno, e que ela foi ver a vó e não me avisou das horas. Fui ver, já pensando em pegar café (mas esquecendo a caneca): o banho Maria evaporou, não sobrou nem Maria nem Rita e nem dom. Clarice me esperava enquanto eu decidia se desligava o forno ou não. Abaixei bastante; o garfo saiu limpo, coloquei mais Maria para banhar ao redor da forma dentro de outra, “logo desligo”. Fui lá fora, pensei em ir até a vó — não fui. Mulher difícil. Voltei para dentro, me cobri, “nem são seis da tarde e já está escuro”. É por isso que não gosto do inverno. Gosto do escuro que vem com a madrugada, gosto da longevidade da luz do dia. E acredita que já ia me esquecendo do café? Voltei pelo pudim, decidi desligar. Fiquei olhando o forno: desenformo ou não? Fiquei com medo de grudar depois. Decidi que ia. Saiu todo esbagaçadinho, mas parecia pronto. Fiquei olhando ele todo deformado, o açúcar da calda não era apropriado. Parte ficou na forma. Coloquei na geladeira e fui ler; quando dei por mim, cadê o café? Ficou lá, dentro do micro-ondas. Não seria a primeira vez. Esquentei o café. Voltei. Devorei o livro de Clarice enquanto o pudim esfriava na geladeira. Acabei o livro. Li o Posfácio. Decidi escrever um ensaio sobre. Abri o notebook. De repente, me lembrei do padlet. É um ótimo organizador, e há muito tempo eu não abria o meu.
Depois de ver Marley & Eu na infância, jurei que um dia seria colunista só por diversão (coitada), e coisa de 1-2 anos atrás, escrevia no padlet como meu jornal pessoal. Já tinha o substack, mas não tinha quase ninguém aqui na época. Ainda guardava boa parte da minha escrita pra mim. Encontrei esse texto de um ano atrás e não soube o que dizer. Quero ler o que mais tem lá, mas primeiro quero escrever o ensaio sobre Clarice porque penso rápido demais e isso me atrapalha de vez em quando. Uma coisa de cada vez, se não me atropelo. Contudo, decidi que antes de qualquer coisa deixaria o relato aqui. O resto é com você.
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Já existem autores mortos demais — confissão; prosa.
Eis que por volta da última semana de abril, nos seus últimos respiros de quarto mês, semana em que decidi não fazer outra coisa a não ser trabalhar no estágio de tradução e descansar, foi a mesma semana em que descobri que não sirvo para ficar parada. Precisava de um descanso total: sem ler, sem escrever, sem pegar um lápis, sem digitar uma tecla sem estudar nada além do rápido francês diário (ça va, ma belle? Oh, oui, oui, Les Champs-Elysées et vous beaux yeux qui je ne peux résister), para me recuperar. E apesar de ter ajudado, em vários momentos foi angustiante. Então decidi fazer algo simples: revisar coletâneas de poemas. Em três dias finalizei dois livros, e o processo se deu basicamente pelas etapas: revisar, apagar (ou não), e se não apagasse, mudar algo ligeiramente. Apenas isso. E quantos poemas sumiram... dois, três anos, são pouquíssimo em valor numérico, mas são uma vida, diversos mundos, em contagem humana. Mas e em vida de poeta? A escrita muda com a gente, se desenvolve, se espicha, se molda. Tive o prazer de ouvir de uma amiga “você é uma metamorfose ambulante”, e assim como Raul, prefiro ser.
Acontece que me deparei com sentimentos dos quais passei a discordar, ideias que (apesar de terem lá suas razões) agora pareciam inocentes demais. Sempre há um resquício de inocência; pode ser que daqui a alguns anos eu reveja as escritas de 2024 e pense “pobrezinha”, como pensei sobre a escritora de meados de 22. Acontece também que minha escrita mudou tanto, principalmente na poesia, que não suportei olhar nada como estava. Já descartei muitos livros (por outros motivos), mas ainda queria (ao menos tentar) publicar aqueles, então mexi em algumas, adaptei à minha linguagem, forma, gramática e sentimentos atuais. Um dia alguém me disse que não se deve apagar “porque você já pensou, já sentiu”. Mas se essas palavras fossem publicadas, qual seria o rosto delas se não o único que tenho?
O que mais me incomodou não foi o que estava escrito. Foi o fato de que aquela pessoa que escreveu já estava morta. Todos os seus sentimentos morreram com ela; sua perda já não me causava dor, mas um real incômodo enlutado. E pensava: ainda quero tentar publicar. Se conseguir, serei eu ali? Me deparei com a ideia de que não queria representar uma versão passada; ela ficou em outro ano. Existem questões que é melhor não citar, mas que não são difíceis de se imaginar. O que mata uma mulher em vida? Começa com A. Não é amor, por favor, não me ofenda desse jeito. Ele vem em diferentes formas e então morremos. Há uma estranha forma de morrer dentro disso porque começa de forma lenta, e de repente tem um, um único fator que dá cabo de vez. É estranho e assustador. É mais estranho e assustador que um acontecimento pareça conseguir ser mais forte que todos os outros e o chamamos de gota d'água. Tão determinante. Ele, por si só, consegue ser dilacerador e talvez se viesse isolado os outros nem precisariam se dar ao trabalho de aparecer. Mas é o que temos: um conjunto. Todas as coisas acumuladas e então uma que diz ponto final da própria maneira, no pé do ouvido, no estômago, ecoando nos tímpanos do peito. Como é estranho o desgaste... Então, por fim, o que mais me incomodou é que quem lia os poemas vencidos era meu óbito. Não gostei de ser lembrada nem do belo nem do horrível. Ajustei a maioria. A inocência que me perdoe, mas a matei também. Ficou resguardada em algum arquivo em pdf antigo que nunca mais seria aberto. E isso é o mais curioso de tudo: até decidir revisar e ver se estavam bons (pelo menos ao que eu achei que poderia estar à altura da editora), nunca tinha lido nada. Escrevo os poemas uma vez, releio na hora para encontrar algum erro gramatical e não os visito novamente. Aquela visita trouxe sentimentos conflitantes, mas algum conformismo. Adaptei à realidade atual, ao rosto atual. Revisitei momentos simples e outros tão definitivos para o agora, e na época foram tão triviais que nem imaginei que seriam tão importantes. Então adaptei, sim, e apaguei dezenas, porque ainda queria usar uma boa parte daqueles livros e que continuassem sendo eles mesmos (mesmo arquivo no docs, mesma imutável folha de rosto). Já existem autores mortos demais e eu definitivamente não seria o rosto vivo de uma.
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É assim que termina porque só teve acesso quem teve o link (uns dois gatos pingados), e esse mesmo existiu sem ninguém ver — até agora. E caso você goste de plataformas de organização, vá fuçar o padlet. Ele é incrível e dá pra personalizar bastante.
E foi assim que ficou lá. Com uma foto de sapatos solitários e sem uma visita por mais de um ano. E já que existem textos enterrados o suficiente, quis resgatar esse. Fim.
meu deus que escrita linda e cativante, sem palavras