Acorda. Levanta. Escova os dentes. Toma café, come torrada, passa requeijão, geleia, frita ovos estalando ou mexidos, misturados, sal e manteiga — atreva-se com a pimenta! Como tudo deve ser. Pega o ônibus (ou não), prepara o escritório (lá ou cá), lê e digita, atende a outros, faz, faz, faz. Corre o dia e o Tempo não saiu do lugar; encara como se perguntasse algo ou esperasse a resposta da pergunta que não foi feita. Joga ao ar e o ar abafa; irritação pura. Multidão cá e lá, todo canto tem gente, toda gente vai pr’um canto, e nós mesmos desaprendemos a cantar. Ainda se cantarola? Vê-se a tragédia tão facilmente e a bondade se transmutou em lapsos, ainda aparece, graças. Rodas passam, trilhos arranham, trens descarrilham e nós mesmos já perdemos os trilhos, os rumos, descarrilhamos e batemos no precipício (não disseram que ele nos encara de volta? bobagem, nos engole e nem nos damos conta — o que se vê são suas entranhas, intestino, indigesto destino!)
Se eu pudesse digerir todas as emoções antes que elas me engolissem, dariam um jeito de regurgitarem e me chamariam de vaca mesmo assim porque não cedi, atravessando de novo minha garganta e se expondo no chão à minha frente como se me dissessem: isso é o que és; isso é o que mora em ti — e é apenas um pedaço. Sucumba! E se eu sucumbir, o que faço? O que vem? Regurgitei as emoções por cerca de oito vezes ontem dentro de uma hora. Em duas vieram em inteira forma de almoço, o resto — não reconheci, nem sabia que teria tal forma dentro de mim. Mas é isto que resta? E mesmo dentro do saco eram elas que me olhavam com nojo, e eu notava com uma decepção incalculável. É isto que resta, eu pensei — ou penso que pensei, pois tudo foi um embaralhado estranho, confuso — na maior parte do tempo estive de olhos fechados. Lembro-me de abri-los e ver diversos carros correndo do outro lado; lembro-me de gritar com tanta força sem saber se alguém além dos meus dois ramos de família (mãe e tio) ouviam. A angústia ecoou pelas ruas de São Paulo em alto tom dessa vez? Arregalei os olhos para o cemitério. Os fechei de novo quando o tremor me atravessou; o choque me tomava como um raio se alimentando de mim e me esvaindo; esvaindo! Nunca completamente — se não, o que resta? E eu tenho que restar apenas para que as moléculas se refaçam e o horror se repita.
Depois tudo volta ao normal: acorda, escova, lava, rega, coa, toma, vê, arruma, lê, digita, atende, faz. Até que haja uma interrupção (como sempre há) e tire tudo do lugar (como um cubo mágico prestes a se resolver sendo embaralhado de novo) e embaraça, e retorna, e de novo as mesmas sensações — e de novo regurgito, e de novo ei de expelir através do pranto; de novo esvaindo.
Alguns dizem que a constância é o segredo de tudo. Realmente! A constância é o segredo de tudo e não somente para tudo. “Se exercitar todos os dias, fazer tal coisa por tanto tempo nessa cronometragem, constância, constância, constância”. Já virou uma compulsão, um vício, uma obsessão, a cura para todos os males — e a dinâmica dos mesmos também, até que se tenha uma interrupção para além da força humana terrivelmente limitada. O que faremos quando nossa carne não for forte o suficiente? Quando a mente não bastar? Embaralha-se tão facilmente. Não somos somente a geração do desespero, toda a Era está afundada nele.
Isso não significa que não encontramos motivos para sorrir, continuar e até sentir gratidão [olha só!] por termos nascido — sem isso já teríamos nos rendido, fosse aos vícios ou aos trilhos. De qualquer forma, voltemos ao caos:
A constância dos males é mais constante do que a das lutas — o corpo tem um limite, a cabeça, a vontade, a tentativa, nós temos um limite e os acontecimentos possuem uma continuidade superior à nossa. A linearidade é explícita enquanto a nossa é cheia de neblina. Então se continua — porque é ótimo continuar — e o resto também. Parece repentino quando uma interrupção irrompe, mas é apenas a cortina sendo puxada. É o inevitável mostrando-se enfim, sorrateiramente explosivo quando só inflou por todo o tempo.
Nem sempre há um final moral, animador, incentivador ou coisa do tipo; despeço-me neste texto dizendo que toda constância se interrompe de alguma forma. Não me vejo em posição de dizer firmemente: ponha-se contra ela, por mais que eu quisesse, pois como se levanta tão veementemente contra as coisas que não se pode dispensar? Eu mesma não me vejo em condições de interromper nada ainda que me veja constantemente interrompida, e sigo quase que automaticamente. A vida é, por vezes, um entediante processo burocrático — só se pode continuar agindo com homologações e averbações. Por essas e outras, jamais faria direito.
Constância é uma moeda de dois lados como qualquer outra coisa. A ideia sobre-humana que se pode manter uma imbatível é a coisificação, o humano como maquinário. A única constância firme é a frágil forma maleável das coisas, que reafirma a falta de controle e que somos na verdade meras coisinhas vivas engolidas [constantemente], seja pelas circunstâncias, seja pelo resto — já não tenho muitas respostas.
Sobreviveremos em estado constante de metamorfose ambulante.
u a u. apenas isso. fiquei até sem palavras. parabéns bê, sempre surpreendendo.
amei o texto, bê!!
a reflexão sobre constância foi tão real, hoje em dia as pessoas pegam uma palavra e querer tirar dela 8 ou 80, ou você é alguém que não faz absolutamente nada, ou você precisa ser aquela pessoa obcecada que faz tudo igual, sem errar, todos os dias.
(in)felizmente, a vida não é assim.
pra mim, constância é sobre fazer o que precisa ser feito todo dia, uns dias com excelência, outros dias, não. mas sempre está ali, cumprindo o que deve ser feito.
assim como o trabalho kkk todos os dias nós vamos, às vezes estamos 100%, mas às vezes nossos “100%” naquele dia são 10%.